Olhar o passado: ao contrário de o lamentar e sofrer, temos que o transformar numa fonte de alegria, por pior que ele tenha sido.

O ALFERES FAZIA ANOS - MISSÃO NO CAUERE



Foto de tradional aldeamento em Tete

.
.
.
.
.
.
.
O NOSSO ALFERES FAZIA ANOS
.
Dias 21, 22 e 23 de Março de 1969, o 4º grupo de combate da C. Caç 2359 sai para uma patrulha de 3 dias para a região de Ponde, igual a tantas outras já efectuadas: nomadização, acção psicológica e pesquisa sobre eventual contacto ou aliciamento por parte do In sobre as populações.
Ponde era uma região que ficava +/- a 30 kms para Sul de VUENDE, na picada que iria entroncar com a picada CHIUTA – CASULA, local muitas vezes atravessado por colunas militares de, ou, para a CHIUTA, já que aqui estava estacionado um pelotão da C. Caç. 2359. Nunca tinha havido relato ou notícias sobre uma eventual presença do In naquelas paragens, sendo considerada por isso uma zona pacífica.
Manhã cedo, após o café matinal começaram os preparativos para a missão: preenchimento do mapa com o pessoal escalado, levantamento das rações de combate, abastecimento de água e verificação do armamento etc. Mas também havia que passar pela cantina para levantar uma encomenda do nosso Alferes: umas grades de cerveja porque ele ia fazer anos; num ápice tudo estava acomodado debaixo dos bancos dos unimogues não fosse o Capitão detectar alguma coisa.
. Chegados ao local, junto a uma cantina ali existente, apeamo-nos das viaturas e encetamos a caminhada para o interior da mata até ao sopé de uns montes. Ali almoçamos e, de tarde, fomos contactar a população de uma aldeia próxima. Com o aproximar da noite aproximámo-nos da cantina para ali pernoitar, montada a segurança dois postos de sentinela, um na frente da cantina e outro na traseira. O edifício era de construção clássica, em tijolo e alvenaria, com cimalha triangular central, telhado de duas águas, porta e duas janelas que davam para o alpendre frontal da casa. O alpendre, construído a toda a largura da cantina, era murado em toda a sua extensão por um murete também em tijolo e alvenaria, com cerca de 1 metro de altura, servindo diversas funcionalidades (carga e descarga de mercadorias, depósito de mercadorias e vasilhame diverso, etc.). No alpendre estava também instalada uma máquina de costura, posto de trabalho do alfaiate, figura típica de qualquer cantina que se prezasse. A cantina do Ponde, que pertencia a um Sr.Gonçalves que também era proprietário duma outra já muito perto da Chiúta ( situada na picada Chiúta-Casula, a uns poucos kms da auto-estrada Tete-Bene, em construção), tinha um alfaiate que era simultaneamente o encarregado e que lá habitava com a mulher, que o ajudava no aviamento ao balcão. O edifício estava implantado num dos lados de um imenso terreiro rectangular, 50 mts ou mais afastado da picada. Entre esta e a cantina, mais ou menos ao centro do terreiro, no enfiamento da porta da cantina, estava colocado um poste de madeira com cerca de 1,5m de altura, com uma vasilha de folha presa a meia altura, que servia para recolher a água da chuva. Tratava-se de um posto pluviométrico, provavelmente integrado na rede do Serviço Meteorológico de Moçambique.
Esta descrição, um bocadinho longa, tornou-se necessária para melhor se perceber o resto da narrativa.
No segundo dia de patrulha, 22 de Março, o alferes Graça fazia 24 anos. Ao levantar todos os militares o foram felicitar e dar os parabéns pelo aniversário. Refugiámo-nos novamente no mato, nas traseiras da cantina onde passámos e festejámos o dia de anos; a meio da tarde voltou-se à cantina para novamente ali se pernoitar. Como ainda era cedo houve alguns exageros de nossa parte, descurou-se a segurança e a dissimulação da nossa presença. Já no final do dia, ao lusco-fusco, ouviram-se alguns gritos ao longe, espaçados, vindos do lado do caminho que conduzia à aldeia do Ponde. Perguntado sobre a origem de tais gritos, o alfaiate sugeriu que poderiam ser chamamentos entre elementos da população que regressavam das machambas à aldeia. Descansados por esta explicação e confiados no alfaiate que também pernoitava na cantina com a mulher, o pessoal recolheu ao interior do edifício para passar a noite a coberto da cacimba que ameaçava caír. Infelizmente, não era só a cacimba a ameaçar... Na calada da noite, eram 0:20 horas, as sentinelas tinham mudado há pouco, o tempo também tinha mudado, caía uma cacimba abundante e a escuridão era total. Um enorme estrondo fez acordar toda a gente: todos em sobressalto, as rajadas das armas automáticas trazem-nos à realidade. Novo estrondo, mais rajadas, é um ataque dos turras, gera-se a confusão: - Onde está a minha espingarda?
Devia estar aqui! - Pega numa qualquer, responde o colega.
. A secção situada do lado fronteiriço da cantina começa a ripostar, o Campos “Bairro Alto” tem papel preponderante e é o primeiro a reagir, os restantes vêm a seguir e rechaçam o In, que acaba por fugir. Já refeitos do susto, aguardou-se por novo ataque e averiguou-se o estado do pessoal; só há um ferido! O Monteiro que era a sentinela na frente da cantina, parecia estar mal, gritava pela mãe: - Oh mãezinha que eu vou morrer! Filhos da p…; o Reis, o enfermeiro tentava descortinar qualquer ferimento, mas só com a chama de um isqueiro não era fácil. Passados estes minutos resolvemos abandonar a cantina, dispersando-nos pelo capim em redor da mesma. A cacimba continuava persistente. Foi uma noite sem dormir, molhados e cheios de frio à espera do amanhecer! Quando finalmente amanheceu, estávamos todos bem, o Monteiro tinha a cabeça ligada, o ferimento era ligeiro, mas foi abraçado por todos. Foi uma sorte incrível! Um rocket tinha rebentado dois metros acima da sua cabeça, em cheio na cimalha central; deve a vida a uma trave de madeira da cobertura do alpendre que o protegeu do leque de estilhaços. O chão ao lado do caixote onde se sentara, estava todo esburacado. O poste e vasilha no meio do terreiro tinham “voado” com outro rocket... O chefe e a população da aldeia do Ponde tinham desaparecido.
.
Narrado por:
Joaquim Santos
.
.
.
MISSÃO (IN)ESPERADA NO CAUERE
.
Estava-se em Outubro de 1969, era o início da época das chuvas e do calor tórrido, a temperatura média ultrapassa os 40 graus. Em Tete, muitos alcunham o Distrito como o “Inferno de África.” O 4.º grupo de combate ia sair para mais uma patrulha: verificar no terreno se o In teria voltado a reconstruir uma base destruída pelas nossas tropas. Já instalados nas viaturas, os elementos do 4º Pelotão receberam a visita do seu Alferes, que adoentado, se veio despedir e desejar-nos boa sorte. Apesar de irem sair com um novo Cmdt estavam confiantes e preparados para a missão que, à partida, se revelava difícil e perigosa, num terreno montanhoso, com escassez de água e onde o In se manifestara diversas vezes. A coluna ruma a Oeste, é a picada para o BENE; passa-se pela Missão Jesuíta e a seguir a ponte sobre o rio Chiritse para, em seguida, virar para Norte rumo ao Cauere.
.
Passados os montes Chadzuma a coluna continuou, agora mais devagar. O percurso torna-se mais acidentado e a aproximação do local onde outro grupo de combate sofrera uma emboscada é feita com cautelas redobradas. À direita surge o monte Casulanhungo, onde uma base tinha sido destruída, para em seguida atingirmos uma enorme clareira, local previamente estabelecido para abandonar as viaturas. Apeados destas, que entretanto encetaram o regresso ao aquartelamento, eis que surge a primeira surpresa: na picada são visíveis pegadas muito recentes que vão na direcção do Cauere (povoação abandonada) e no sentido contrário ao da missão a efectuar. Confrontados com a situação, concluiu-se ser uma oportunidade rara a aproveitar e seguir o rasto das pegadas, adiando a missão original. A picada terminara ali. Agora, um trilho ladeado de capim (a arborização era pouca densa) conduzia-nos para o interior do vale; lentamente fomo-nos embrenhando na mata, tudo em silêncio e com o dedo no gatilho. A marcha parou. Tudo acachapado! Todos se deitam, sem ruído. O passa-palavra chega e eu, que seguia na cauda sou chamado para ir à frente. Ali chegado, o Alferes aponta-me para a frente onde se avistavam várias palhotas. Aldeia ali?! Não, não era possível! Ali era zona hostil, tudo era suspeito! Mantivemo-nos em silêncio a observar possíveis movimentos mas nem sequer uma galinha foi avistada! Era uma base da guerrilha. Havia ainda uma linha de água a transpor. Com uma formação em linha entrámos de rompante na dita base, sem resistência nem nada que nos detivesse. Depois de se revistar tudo em pormenor, nada se encontrou. Chegou-se fogo às palhotas. Era realmente uma base: as palhotas eram recentes, construídas junto à encosta de uns montes e debaixo de árvores para não serem detectadas pela aviação; a ausência de postos de sentinela faz supor que estava ainda em fase de construção ou serviria apenas para abrigo na passagem por aquela região.
.
Formada uma segurança em círculo, tratou-se de comunicar o caso para o
quartel em Vuende; ainda o radiotelegrafista tentava o contacto e eis que uma das nossas sentinelas nos vem avisar que três elementos In se aproximavam pelo trilho de acesso à base então destruída. O fumo das palhotas a arder era bem visível. Vinham, por isso desconfiados e com a imprudência de alguns de nós em espreitar, na tentativa de os localizar, fez com que fossemos detectados e daí, até ao fugirem em debandada foi um ápice. Ainda se fez fogo sobre eles. Disparámos duas morteiradas, mas sem resultado. Perseguiu-se o rasto deles durante algum tempo, mas acabou-se por perder definitivamente o contacto.
.
Perdeu-se também a oportunidade de capturar três elementos In após meses e meses a palmilhar montes e vales.
.
Narrado por:
Joaquim Santos